10.12.07

a travessia

«Não é preciso fazer o elogio do voluntariado dos hospitais, neste caso do hospital de Santo António, porque tudo o que é impulso para fazer bem não precisa de louvores. Encontra-se paga bastante em se ser necessário. A terra é um lugar de passagem, está muito bem dito. Mas, no entanto, é preciso suportar muita coisa, respirar o ar contaminado e ter habilidade bastante para não sonhar com o que é terrível. O voluntário tem sobretudo que não pensar muito no seu trabalho, não lhe dar nomes eloquentes nem se deixar levar pela Torrente das bonitas frases. A civilização é feita mais de mortos que de vivos, e se queremos associar-nos a ela temos de governar os nossos sentimentos para fazer um pacto com a dor.

As mulheres são mais capazes desse pacto com o sofrimento porque são mais propensas a esquecer. Andam para a frente e não se põem a abanar a cabeça cheia de sabedoria. Não choram quando o caso é de dar conforto para o qual as lágrimas não ajudam nada. Servir um almoço, ajeitar uma almofada, tem mais poesia que as valsas de Strauss. Penso que o lema do voluntariado devia ser este: "O voluntariado não é uma ocupação, é uma travessia na noite onde se inventa o dia seguinte".»

Agustina Bessa-Luís (in “Comunidade e Saúde", Revista da Liga de Amigos do Hospital de Santo António, Junho de 2003)

16.11.07

ESPAÇOS, TEMPOS E SILÊNCIOS

o estilo da vida contemplativa

Já citei várias vezes neste livro, Dogen, uma das grandes figuras do budismo Zen japonês. Morreu somente com 53 anos, mas deixou uma grande esteira de influência. Com este religioso e pensador podemos aprender a encontrar o mais sublime no interior do quotidiano. Porém, enquanto jovem, viajou até à China em busca de Sabedoria, tendo-se deparado com três decepções, as quais resumem a sua aprendizagem.

A primeira decepção de Dogen foi a resposta que recebeu de um Mestre famoso, quando lhe solicitou ser admitido como seu discípulo. Dogen estava profundamente convencido que tinha encontrado o Mestre que buscava: autêntico, sábio e santo. Queria permanecer a seu lado para aprender. Mas o Mestre recusou. Aparentemente, estaria muito ocupado. Nunca, Dogen, teria estranhado se as alegadas ocupações fossem trabalhos intelectuais ou exercícios ascéticos, pregações ou meditações. Ficou estarrecido ao ouvir dos lábios do Mestre a razão para a sua falta de tempo. Este ano era a sua vez de trabalhar no refeitório, diariamente. Portanto, não tinha tempo. Dogen permanecia estarrecido. Na sua mente de principiante não podia imaginar a altura dum mestre e a profundidade dum místico na mesma pessoa agora dedicada a um ofício simples e vulgar: limpar mesas, varrer migalhas, lavar pratos. Passaram-se os anos e, ao cabo de algum tempo, Dogen compreendeu o que se escondia por trás de tanta simplicidade. Para descobrir o absoluto há que aprender a olhar o prosaico e o quotidiano das coisas relativas. Será este um dos temas centrais da sua obra ‘A Arte de Olhar’ [em japonês, shooboogenzoo] .

A segunda decepção de Dogen foi o longo compasso de espera que o Mestre lhe propusera – tinha a sensação de estar a perder tempo, braços cruzados sem fazer nada. Para alguém, como Dogen, grande talento e capacidade intelectual, com enorme capacidade para aprender línguas e dotado para assimilar culturas estrangeiras, os modos do Mestre impacientavam-no. Cuidava que o seu Mestre lhe ofereceria abundantes leituras nas quais mergulharia orientado por ele ou lhe facultaria temas sobre os quais poderia pensar e escrever. Mas o Mestre insistia em algo que lhe parecia ser a inacção mais pura e sem sentido: simplesmente, sentar-se a contemplar, sem meditar em nada, «sentar-se a pensar o não-pensar». Tão só. Apenas teria que passar horas inteiras nessa aparente inactividade. Só passando por aí se lograria sair de si e “abrir-se de corpo inteiro à iluminação”. Só para perceber isto, Dogen levou anos. Por fim, compreendeu, a partir desta experiência prática, que nesta lenta espera e neste aparente não-fazer-nada se escondia o segredo dum caminho: um sendeiro pelo qual progredimos sem nos movermos, movemo-nos permanecendo quietos e se acelera indo tudo muito devagar.

Chegou, então, a terceira decepção. Era-lhe muito penoso suportar os incompreensíveis silêncios do Mestre! Tinha-se deslocado do Japão à China disposto a tirar todo o partido para aprender o máximo. Sempre se fazia acompanhar, para onde quer que fosse, de pincéis e tinta, a fim de tomar nota de tudo com boa caligrafia. Pensava regressar ao seu país carregado de apontamentos que logo logo frutificariam quando se difundissem entre os seus futuros discípulos. Aqueles eram tempos em que a caligrafia era exaltada. Se fosse hoje, a sua pasta estaria repleta de disquetes e CD-Room. Mas, Dogen, teve de se desenganar. Demorou, mas, ao fim e ao cabo, percebeu a Sabedoria que se oculta no provérbio antigo: “Aquele que sabe, cala-o: palrador, sinal de que não sabe.” E regressou ao Japão sem apontamentos por aí além, mas com o corpo embebido em Sabedoria. À custa disso se publicaram, depois, abundantes páginas suas, estenografadas por seus discípulos, facto nunca por si pretendido. Mas, até chegar aí, teve primeiro de renunciar à ansiedade de devorar leituras e produzir escritos. Era a terceira negação, a companheira da terceira decepção.

Assim, e em pinceladas breves, temos os traços principais duma tela que decora a sala de espera da espiritualidade oriental: o quotidiano, o lento e o calado. Dito de outro modo: os espaços da vida diária, os tempos recheados de pausas e o discurso prenhe de silêncios. Nestes três traços temos resumida toda uma tradição sapiencial, que circula pelas mais diversas formas de religiosidade oriental e por filosofias que a expressam também. Desenvolvamos estes tópicos.

QUOTIDIANIDADE

Comecemos por nos fixar no primeiro destes temas: a fundura do quotidiano. Recuemos ao século oitavo e visitemos o monge Kuukai [774-835]. Se chegarmos lá, ao mosteiro, a meio da manhã, não o distinguiremos de um camponês que lavra sua terra ou abre um sendeiro. Se chegarmos a meio da tarde, talvez ele nos pareça totalmente outro: correctamente sentado diante da carteira, rigorosamente vestido com um kimono, esmerando-se, com um pincel, na caligrafia japonesa. Se fosse manhã, surpreendê-lo-íamos sentado em postura de lotus, durante largas horas de meditação. No seu dia-a-dia, conjugava, pois, trabalho manual, contemplação e estudo. Ajudava os camponeses a abrir poços e a construir represas; era um dos melhores calígrafos do país, servindo-lhe, a sua escrita, de veículo para um pensar profundo, plasmado em extensas obras. Mas, no fundo no fundo, ele era um contemplativo.

Esta é a pessoa que escreveu isto: “Se Buda não estivesse presente em cada tufo de erva e em cada folha de árvore, como poderia luzir sua verdura?” E, sempre que alguém duvidasse da imanência do absoluto no quotidiano, acrescentava: “A verdade está demasiado perto de nós e, por causa disso, raramente a percebemos com nitidez”.

O patriarca do Zen, Dogen, também insistia no óbvio do absoluto a um tempo próximo e afastado, familiar e intangível. Após o seu regresso da China, dizia que o resultado da sua aprendizagem se resumia a saber que a linha do nariz era a vertical e a dos olhos a horizontal. Procurava, assim, ajudar o seu interlocutor a encontrar o profundo no imediato, o absoluto no relativo e o divino no quotidiano.

É sintomática, aliás, a ligação que existe, nestas tradições orientais, entre a vivência funda da identificação com a natureza e o descobrimento do valor eterno do quotidiano. O poeta Bashô [1644-1694], a partir da noção de “capacidade para dar à luz formas sempre novas”, percebia a natureza como um movimento indistinguível do conjunto do universo, o qual, de modo lento e mudo, faz nascer, a cada dia e em cada lugarejo, milagres de novidade. Olhamos atentamente uma planta e não somos capazes de a ver crescer, ainda que a cada momento ela cresça. Ao cabo de uns dias damo-nos conta que floriu. Fê-lo de modo lento, calado e quotidiano. Tratamos de descobrir esse milagre e espantamo-nos: quanto mais comprido o poema, pior é; quanto mais breve, mais evocativo em seu silêncio condensado: “não lhe toques, que assim é a rosa”, teria dito outro poeta, ocidental, que tinha muita mais alma oriental do que ele própria suspeitava...

Uma das palavras com que em japonês nos referimos à natureza não tem nada de abstracto. Está composta por três pictogramas que significam, respectivamente, “neve”, “lua” e “flores” [setsu-getsu-ka]. Os copos de neve realçam o que cobrem, com formas inéditas, desde a sebe do jardim até aos caixotes do lixo. São símbolo dum quotidiano embelezado. A lua, com as suas fases, convida-nos a referirmos tudo e todos à lentidão de um movimento, movimento esse que avança independente da nossa vontade. E as flores, reunindo seu encanto e sua fugacidade, convidam-nos a calar admirando a maravilha do efémero. “Neve”, “lua”, “flores” é uma frase emblemática de toda a filosofia de identificação com a natureza através do quotidiano, do lento e do calado. A neve antecipa a primavera que se está gestando sob o seu brando manto. A lua-quarto-crescente é anúncio de lua-cheia. Os botões prenunciam o esplendor da floração. É todo um movimento de criatividade.

LENTIDÃO

O equivalente japonês do termo latino lente festina, [«apressa-te devagar»], diz-se de modo parecido: “se tens pressa, vai dar uma volta”. Em castelhano, dizemos: “vísteme despacio, que tengo prisa” ou “no hay atajo sin trabajo”. Na tradição do artesanato japonês fala-se de “atitude de artesão” como de um estilo e modo de trabalhar próprio de quem põe nisso toda a sua alma, gastando tempo em cada detalhe da sua obra, produzindo cada objecto como se fora exemplar único. O exemplo típico que se pode referir é o da cerâmica. Cada taça é distinta tal como surge, mesmo com seus defeitos, obra conjunta do fogo e do artesão. Mas, antes de conseguir essa obra prima, o artesão tentou-o centenas de vezes sempre do mesmo modo, rejeitou muitos produtos-não-conseguidos, numa palavra, gastou muitíssimo tempo.

“Quem planta palmeiras não come bagas delas”, diz-se na cultura levantina. Em Portugal: “Quem planta pessegueiros não deixa p’ra terceiros”. Desfrutarão, as gerações vindouras, do fruto de um esforço vasto e anónimo. No Ocidente, a construção das catedrais é um exemplo concludente. No Oriente, atrai-nos, a atenção, os pagodes em que, sem um único prego nem apoios metálicos, se fizeram milagres arquitectónicos com base apenas em encaixes de madeira. Porém, houve que usar madeiras centenárias, bem cortadas e preparadas. Nem imaginamos a quantidade de tempo e o esforço anónimo que está por trás de cada um deles.

Recordo a conversa com um jardineiro de uma vila de recreio imperial no norte do Japão. “Vê estes pinheiros todos retorcidos?”, dizia-me ele. “A sua mais bela imagem é a que oferecem quando se vergam, sem quebrar-se, ao peso da neve”. “Não precisam de estacas?”, perguntei-lhe. Explicou-me: “Custou muito esforço e muitos anos até se conseguir uma curvatura como a deste ramo. Desde que o pinheiro começou a crescer, foram podando-o com habilidade. Se o ramo está comprido demais, cairá ao peso da neve; se ficar muito curto, não produzirá um efeito tão belo”. Diante do meu espanto mudo, o jardineiro ria-se e repetia-me: “É tudo uma questão de fazê-lo devagar, senhor; dar tempo ao tempo e... muita paciência”.

Não se acelera o crescimento duma planta puxando-a com força para cima: assim, só conseguiríamos arrancá-la e desenraizá-la. Todo o organismo vivo tem seu ritmo. O espírito do taoismo só tem que se sintonizar com o Tao, caminho que a tudo orienta. “Deixa que tudo siga o seu curso natural”. Estamos convidados, assim, a abandonar o nosso egocentrismo, a viver em comunhão com a natureza e a descobrir o Caminho no prosaico e no quotidiano, enquanto caminhamos... lentamente.

Para a atitude ocidental da pressa e da aceleração é dificilmente aceitável o convite taoista ao «não-actuar». Provoca rejeição, pois parece que se trata de não fazer nada e deixar-se de braços cruzados. Mas não é. Pelo contrário, trata-se de nos conscientizarmos do muito que se pode fazer deixando que isso se faça por si, deixando estar as coisas aí e deixando passar os acontecimentos. Sobretudo, deixando que as pessoas sejam...

Quando se introduziu o budismo no Japão, interiorizou-se uma maneira primitiva [xintoísta] de perceber a transcendência da natureza e relacionou-se isso com o modo natural de vida quotidiana. Não se tratou apenas de procurar mergulhar na natureza e identificar-se com ela. Foi, pelo contrário, todo um processo de descobrir o que é natural, tanto na natureza como nas pessoas e até dentro de mim mesmo. Nesta problemática vemos confluir o sentido xintoísta da natureza, a mentalidade do Tao e o ethos confucionista da prática, juntamente com o sentido budista de descobrir o absoluto latente dentro de nós mesmos. É por isso que a contemplação não é uma evasão a partir do momento em que o espectador consegue captar a natureza, mas é algo que se vive no interior do quotidiano e se reflecte no artesanato, na poesia ou nas relações humanas: um modo de euritmia com a natureza, de encastramento com ela, reverenciando-a ao mesmo tempo que a transformamos.

SILÊNCIOS

Na igreja de Yamaguchi, no alto da colina, assistia à missa uma simpática anciã que jamais faltava aos domingos, com seu kimomo à moda antiga. Transpirando no verão e protegendo o pescoço no inverno, subia, em passitos curtos, a encosta para que chegasse sempre antes do início da missa. No fim, sempre alguém lhe oferecia boleia para descer, mas ela sempre recusava. Um dia explicou-nos porquê. “Prefiro descer pela encosta da colina que vai dar ao jardim do templo budista. Ali, a meio caminho, sento-me e respiro fundo à sombra das árvores. Ali, entre a paz e o silêncio daquelas árvores centenárias, é que verdadeiramente se encontra a Deus...”. “E – acrescentou logo de seguida– “libertamo-nos do cansaço da missa e do sermão...”. Perante o nosso desconcerto, concluiu: “É que na missa, –vocês bem o sabem– há tantas palavras seguidas... são tantas as palavras...!”

Um dito favorito dos monges Zen, reza assim: “Não pintes pernas à serpente”. A serpente é o animal mais fácil de pintar por uma criança mesmo que pequena. Basta traçar uma curva, mas os adultos estragamo-la acrescentando pormenores e matizes. A serpente vira centopeia. Algo parecido acontece no meio eclesiástico-teológico ocidental, com o seu excesso de palavras. As palavras de Dogen, acima citadas, aquando do seu regresso da China ao Japão, resumiam o resultado dos seus cinco anos de estadia, dizendo: “Não trago apontamentos. Venho da China com as mãos vazias. Mas alcancei que a linha do nariz é a vertical e a dos olhos é a horizontal.” Ao falar assim, não estava só a falar, mas a viver em parábolas.

Também Jesus desconcertava o seu auditório ou o seu interlocutor, respondendo a uma pergunta teórica [“Salvam-se muitos?”] com uma resposta parabólica e, ao mesmo tempo, paradoxal [“Trata de entrar pela porta estreita”]. Um monge budista a quem perguntaram o que é a Verdade, respondeu: “Que roxas são as flores! Que verdes são os salgueiros!”. E àquele que queria saber quem era o seu próximo, Jesus contou a parábola do Bom Samaritano...

Mas bastará dizer que o nosso ocidental excesso de palavras é o extremo do silêncio oriental? Pensar assim será muito limitado. Tanto uns como outros necessitariam de reflectir mais fundo sobre a pluralidade da linguagem humana e as atitudes a isso subjacentes .Pergunto: não haverá uma atitude de superioridade na segurança com que presumimos dos êxitos logocêntricos da nossa cultura? Não basta juntar uns quantos textos místicos europeus e alinhar umas quantas palavras de S. João da Cruz ao lado de outras da tradição budista. Para lá do comparativismo, precisamos, na verdade, de aprender a calar a boca quanto à questão de Deus, para que Ele se possa fazer ouvir entre nós.

Até aqui, evoquei três aspectos da tradição oriental, evidenciados sobretudo pelo budismo Zen, o qual nos convida a ficar em silêncio para saborear o eterno no instante quotidiano. Não foram mais do que traços ‘à vol d’oiseau’, simples evocações e sugestões. Procurei nestas pinceladas sublinhar os traços emblemáticos do episódio de Dogen com que abri. Em resumo: saborear o eterno e o absoluto nas pausas e nos silêncios da vida quotidiana.

O quotidiano, o lento e o calado são o emblema de toda uma espiritualidade. Creio que poderíamos aprender com o Oriente, neste aspecto. Aprender a descobrir o valor eterno do doméstico e do quotidiano, o “Deus entre os púcaros” de Teresa de Jesus. Aprender a unir eterno e presente, introduzindo na nossa vida pausas e espaços de receptividade. Aprender a escutar no silêncio, a calar sobre o absoluto como uma das melhores formas de expressá-lo. Domesticidade quotidiana, pausas sensíveis e silêncios significativos seriam o caminho de toda uma espiritualidade do simples e da simplicidade.

[in, Caminos sapientiales de Oriente, por Juan Masiá Clavel, SJ, Ed. Desclée De Brouwer, 2002. [trad. : p. bateira]]

9.10.07

excerto

«Termino esta obra, com uma pequena pergunta: se o movimento da revelação de Deus em Jesus é, de facto, o que descrevi, que diálogo é possível com as religiões não cristãs? Não será do próprio interesse do cristianismo apostar num fundo comum de conhecimento do «divino», de «Deus», em todas as religiões e considerar segunda a maneira como o crente cristão tem acesso, por Jesus, a esse conhecimento? São questões graves que não podem ser tratadas irreflectidamente. Fazer do cristianismo, em primeiro lugar, um conhecimento do «divino» ou de «Deus», por um caminho original, mas no entanto segundo (não digo secundário), é certamente sedutor para quem deseja estabelecer um diálogo. Parece-me, porém, que o diálogo não se baseia no abandono da sua originalidade. Penso, pelo contrário, que se abrirá mais largamente, embora mais árduo, quando a revelação de Deus em Jesus se mostrar na sua verdadeira singularidade. O desaparecimento das filosofias religiosas no Ocidente permite fazer sobressair melhor o movimento inerente ao testemunho da primitiva Igreja sobre Jesus, como face de Deus, e abre aos encontros entre cristianismo e religiões não cristãs, um caminho que até ao presente não foi percorrido. Não é minimizando Jesus que o cristianismo entra no diálogo, é mantendo-se fiel à sua origem.»

Christian Duquoc, in "Jesus, homem livre", ed. 1973 (Paulinas)

8.10.07

Um Deus que se alegra com as nossas alegrias

Pensar que só a dor redime e que quanto maior é a dor, melhor, foi uma característica do cristianismo tardio. Os primeiros cristãos e mártires das catacumbas não pensavam assim. Eles rejeitavam o crucifixo como um sinal de ignomínia, como hoje o é a cadeira eléctrica. Por isso não há nenhuma pintura de Jesus crucificado nas catacumbas. A pintura mais antiga, na catacumba de Priscila de Roma, onde, segundo a tradição, se tinha refugiado Pedro, é a da última ceia: os apóstolos a comer com Jesus. Uma festa.

A santificação da dor pela dor é algo que aparece mais tarde, assim como um certo sentido de culpa pelo pecado. São mecanismos de repressão das consciências. Porque, se a dor é tão importante e santificador, é fácil cair na tentação de deixar a dor correr pelo mundo livremente sem se fazer um esforço para a eliminar.

A alegria, a felicidade, o gozo dos sentidos e até do espírito sempre meteram medo a algumas igrejas. Governa-se melhor com o medo do que com a felicidade. Mas podem pretender que um Deus do medo possa atrair alguém? Só pode ser temido. E daí a rejeitá-lo é só um passo.

Matar Deus para recuperar o sentido da felicidade humana foi para muito um imperativo de vida. Teria sido inútil matar Deus se se tratasse do Deus da serenidade, da tolerância, da criatividade, do gosto pelo novo, feliz pela felicidade do ser humano. Por acaso é perigoso um Deus demasiado bom? O único perigo é fazer Deus à imagem dos nossos rancores e de sacralizar a dor à imagem dos antigos deuses pagãos, famintos de sacrifícios sangrentos.

O que é necessário fazer é aliviar essa dor da qual nunca conseguiremos abstrairmos totalmente. Jesus curava os enfermos e ressuscitava os mortos, em vez de lhes dizer para sofrerem.

Nietzsche escreveu: "amo os homens que caem porque são os que se atrevem". Podia Deus ser diferente? Deviam temê-lo mais, os medrosos que os que tropeçaram na vida. Diz também: "É preciso ter dentro o caos para dar luz a uma estrela que dança". Mas haverá alguma pessoa que chegue à morte sem sentir um grande caos dentro de si? Pois, Deus é quem é capaz de acender uma estrela naquele caos, a estrela da esperança. Por isso estou de acordo com o filósofo alemão quando afirma: "só poderia acreditar num Deus que saiba dançar", quer dizer, um Deus capaz de se divertir com o ser humano, de gozar com a sua alegria, em vez de lhe dar um tropeção e expiá-lo pelas suas quedas. Capaz de estar a seu lado, como o melhor amigo, na hora decisiva (e até) da morte. Como fazem, sem serem deuses, os amigos de verdade de toda uma vida.

(adaptado de: ARIAS, Juan, "Un Dios Para El 2000 – contra el Miedo y a favor de la Felicidade", Descleé De Brouwer, Bilbao, 1998)

24.7.07

SER É SER EM RELAÇÃO

A pergunta fundamental - aquela pergunta que, segundo Aristóteles, desde sempre se ergueu, que ainda hoje se ergue e que sempre se há-de erguer, na perplexidade - é esta: o que é o ser na sua ultimidade?

Para ele, o ser diz-se de muitos modos. Aparecem então as categorias, que são os modos fundamentais do ser e da predicação. São dez: a substância e os nove acidentes - qualidade, quantidade, relação, lugar, tempo, situação, posse, acção, paixão.

Neste enquadramento, a categoria da relação, tradicionalmente, acabou por não ter espessura. Havia cada ser constituído, que, num momento segundo, tinha uma relação (por exemplo, alguém era pai ou mãe).

Assim, classicamente, definiu-se a pessoa como "substância individual de natureza racional" (Boécio) e "existência incomunicável de natureza intelectual" (Ricardo de S. Victor). A definição de Boécio ignorava a relação. A modernidade também afirmou o indivíduo - de individuum, indiviso - pondo-se a si mesmo: é o famoso "penso, logo existo", de Descartes.

Mas, na realidade, ser e ser em relação identificam-se. À partida, cada ser humano é o resultado de uma relação entre um homem e uma mulher, pai e mãe. E fazemo-nos - vamo-nos fazendo - na relação, de tal modo que não começamos por ter consciência do eu, mas do tu, em princípio, do tu da mãe. Aliás, eu e tu e nós só em relação existem e fazem sentido. Retiremos todas as nossas relações na reciprocidade - com os pais, os filhos, os irmãos, marido e mulher, namorados, professores, estudantes, empresários, trabalhadores, colegas, nacionais, estrangeiros, com a natureza, com o passado, o futuro, a história, a divindade - e o que é que fica?

É isso. Estamos em relação recíproca com a natureza: é por ela que vivemos - respiramos, alimentamo-nos -e intervimos nela - é transformando-a que nos transformamos. Somos em relação com todo o passado e futuro, e assim chega a nós toda a história da(s) cultura(s), que nos faz, desfaz e refaz - o que seríamos sem Platão e Euclides e Buda e Jesus e os romanos e os persas e os árabes e os indianos e os ameríndios?

Há aquela ideia de que encerrando-nos em nós é que nos encontramos. Não nego - pelo contrário - a importância da solidão. Não se trata, porém, da solidão narcísica e morta, mas daquela solidão habitada, para meditar, de tal modo que o encontro com os outros seja rico e fecundo. De facto, quem se fecha egoisticamente dentro de si estiola e morre - não é verdade que quem caiu em depressão não quer ver ninguém?

Tudo está em relação e conexão com tudo e quanto mais abertura mais intimidade e ascensão na gradação do ser. As pedras - os seres inanimados - também estão em relação, porque são na comunidade do que é. As plantas, essas já vão à procura do sol, da luz e de alimento - como se estendem as raízes por debaixo dos caminhos à procura de água! - e, por isso, são vivas. Os animais deslocam-se daqui para ali e para longe em busca de fêmea ou de macho ou de alimento ou clima favorável. Estão, portanto, em maior relação e, por isso, já há neles vários tipos de consciência. O Homem, esse é abertura máxima, abertura à totalidade, que inclui o real e o possível.

Precisamente porque é abertura à totalidade do ser e à Transcendência, cada ser humano é dado a si mesmo como eu único, como intimidade suma, segundo a lei paradoxal do quanto mais fora mais dentro. O Homem é pessoa, porque, ao ser coextensivo à totalidade, é dado a si como identidade única: a pessoa, precisamente na sua abertura à totalidade e ao Infinito, é única e incomunicável.

A arte de viver bem e ser feliz deriva de e implica relações vivas e sãs com a realidade toda, a começar pelos mais próximos - dados recentes mostram que é essencial para a felicidade a vinculação à família e aos amigos.

O filósofo Raimon Panikkar disse-o numa palavra complexa, mas verdadeira, referindo-se à religião do futuro: será cosmoteândrica, isto é, tem de integrar as três dimensões interpenetradas da realidade - cósmica, divina e antropológica.

Anselmo Borges

16.7.07

Quem é o teu próximo?

Ele perguntou a Jesus:
"E quem é o meu próximo?"
Lc 10, 29

Uma vez desci de Jerusalém para Jericó. Por estrada, claro, e num belíssimo autocarro com todas as comodidades, a contrastar com os montes agrestes e secos da paisagem. A meio do caminho o guia apontou umas ruínas e disse sorrindo: "A estalagem do bom samaritano!" Não vimos ninguém caído à beira da estrada, mas já a ausência de paz por aquelas terras nos fazia pensar que os caídos estariam noutros lugares, e que os bons samaritanos não gostam de dar nas vistas. Dias depois, uma bomba num mercado de Jerusalém, mostraria como os salteadores de vidas se multiplicam e não há falta de trabalho para quem se encha de compaixão!

Quando nos gastamos a procurar "quem é o meu próximo", quase sempre estamos a justificar nada fazer pelo sofrimento visível. O segredo está no "ver" e não ignorar. Fazer da dor do outro a minha própria dor, acreditar que o mais pequeno gesto ganha uma dimensão de milagre, que nenhuma viagem é mais urgente do que parar para acudir. Podiam ser "íntimos" de Deus e do culto o sacerdote e o funcionário do templo que passaram, mas eram pobres de humanidade. Desviaram o olhar e nem consta que tenham avisado o 112. Jesus não é meigo a denunciar todo o endurecimento de coração. Dizia um cântico, nascido na equipa pastoral da Merceana: " Próximo é quem se aproxima dos outros / e os trata como irmãos".

Entre as grandes estruturas de caridade organizada (importantes em algumas realidades complexas como as de hoje) e ser "bom samaritano" ao sabor do vento há imensos caminhos a inventar que importa ter em conta. Os dois extremos anteriores, no fundo, ficam "à espera" dos que lhes vêm bater à porta, e organizam "listas de espera" ou respondem no imediato sem precaver o futuro. É preciso criar dinamismos próximos de intervenção, unindo os agentes de desenvolvimento local, comprometendo-nos num esforço que conduza a práticas mais livres da "subsidiodependência" e do "tranquilizante" voluntarismo. A tentação das grandes estruturas pode ser a do poder, e a do voluntarismo, a de "brincar à caridadezinha"!

O samaritano não fez tudo sozinho. A estalagem foi também casa de cura e salvação, e o homem caído e abandonado reencontrou a dignidade. Deus nunca é nomeado, mas os padres da Igreja viram no samaritano Jesus e na estalagem a Igreja. O que podemos aprender com isto?

Padre Vítor Gonçalves

29.6.07

O suicídio assistido

Depois da liberalização do aborto até às doze semanas, seria de esperar que o tema da eutanásia fosse trazido à discussão pública. Neste caso, o principal argumento daqueles que defendem a eutanásia incide sobre o direito que o indivíduo tem, em determinadas circunstâncias ─ normalmente associadas a um forte sofrimento físico ou psíquico decorrentes de uma doença incurável ─ de poder decidir pôr termo à sua vida. Julgo que a morte não é em si um direito; antes uma inevitabilidade. Aquilo que todo o ser humano tem direito é de viver e morrer com dignidade.

Outro argumento para justificar a eutanásia corresponde “ao sofrimento da pessoa”. O sofrimento é muitas vezes visto como algo indigno, desumano, motivo de vergonha e que por isso deve ser banido a qualquer preço, pelo que a eutanásia passa ser a vista como um gesto de compaixão. Esta “piedade hipócrita” esconde, por vezes, uma injustiça e um sentimento egoísta, uma vez que considera que os mais fracos, as vítimas do infortúnio, aqueles que adoecem ou simplesmente envelhecem, já não têm lugar nesta sociedade. Ou seja, no caso de surgirem ideias de suicídio nestes indivíduos não se procura demovê-los, nem auxiliá-los. Nestas situações prevalece um espírito de complacência e compreensão, já que o sofrimento e o desespero em que se encontram conduzem automaticamente a um estatuto de “suicidas justificados”.

Então, mas não serão também estes os motivos que levam a maioria dos indivíduos a cometer o suicídio? O homem é o único ser vivo que reflecte sobre a sua própria morte. Na maioria dos países, excluindo o suicídio por motivos políticos ou religiosos mais extremistas, é consensual que o suicídio não deve ser encorajado, devendo-se proteger o indivíduo de causar a morte a si próprio. Afinal, por que é que não existe consenso à volta da eutanásia?

Desde Robbins (1959) verificou-se que mais de 90% das pessoas que se suicidam apresentavam alterações psicopatológicas. Deste modo, estariam privadas do discernimento necessário (em termos mentais) para avaliar em consciência e em liberdade, a decisão de se suicidarem. Sabemos ainda que, por detrás do desejo de morrer, existem várias doenças mentais tratáveis – como é o caso da depressão. Desta forma, a existência de um “suicídio racional” é algo questionável e a história dá-nos um exemplo extraordinário a este respeito: a esmagadora maioria dos prisioneiros dos campos de concentração, mesmo sendo submetidos a um sofrimento atroz e às mais diversas torturas, raramente se suicidavam.

Quase diariamente, os psiquiatras na sua actividade clínica confrontam-se com doentes que tentaram o suicídio ou que têm ideias de o vir a concretizar. A posição do psiquiatra é sempre a mesma: demover a pessoa, protegê-la de si própria, aliviar-lhe a angústia e transmitir-lhe palavras de esperança. Não se julgue, porém, que é sempre fácil fazê-lo, pois somos confrontados com situações dramáticas, horrendas em termos de violência psíquica e cujo sofrimento associado é incomensurável. Diante de tanta tragédia, e da nossa impotência, muitas vezes o papel do médico limita-se a acolher o sofrimento da pessoa. A escutá-la e a sofrer com ela. No entanto, tal como acontece com muitas doenças incuráveis, para as quais o avanço da medicina vai descobrindo novos tratamentos, também verificamos que as situações de tormento infindável muitas vezes acabam por ter uma solução. A pessoa depois de ajudada, recupera a alegria de viver e encontra um sentido para a vida.

A resposta à eutanásia está nos cuidados paliativos. É através desta visão humanista da medicina que se procuram solucionar os problemas decorrentes da doença prolongada, incurável e evolutiva, prevenindo o sofrimento que acarreta, proporcionando a maior qualidade de vida possível aos doentes e às famílias.

Os defensores da eutanásia ou, em sentido lato, do suicídio assistido, apresentam-na como um acto de misericórdia e de compaixão perante o sofrimento de um doente vítima de uma doença grave e incurável. Chegam a ser os próprios familiares que a incitam e reclamam. Transmite-se assim a ideia de que, em determinadas circunstâncias dramáticas, ajudar alguém a pôr fim à sua vida é um acto de caridade e de amor, quando é aí que reside a grande hipocrisia da eutanásia.A eutanásia não é uma prova de amor, mas antes o testemunho egocêntrico da sua rejeição.

Pedro Afonso
Psiquiatra

In Jornal Publico - 28. 06. 2007

28.6.07

Rezar para quê? Repensar a oração da petição

Não há palavras, diante de pais em choro pela perda de um filho: "Tanto pedimos a Deus que nos salvasse o nosso filho, e ele não nos ouviu!..."

Uma vez, uma senhora ainda jovem, muito doce, a quem a mãe morrera seca com o sofrimento, atirou-me: "Sabe? Às vezes penso que Deus não pode ajudar a todos. São tantos a pedir... Coitadinho!..."

É verdade: Deus não pode ouvir as orações todas nem satisfazer todos os pedidos.

O teólogo Andrés Torres Queiruga disse-o de modo chocante, quase brutal, mas, para o crente reflexivo, verdadeiro. Tomemos como exemplo esta oração: "Para que as crianças de África não morram de fome, oremos ao Senhor." "Objectivamente, uma petição deste tipo implica o seguinte: 1. que nós somos bons e tentamos convencer Deus a sê-lo também; 2. que Deus está passivo enquanto o não convencermos, se formos capazes; 3. que, se, no domingo seguinte, as crianças africanas continuarem a morrer de fome, a consequência lógica é que Deus não nos ouviu nem teve piedade; 4. que Deus, se quisesse, podia solucionar o problema da fome, mas, por um motivo qualquer, não quer fazê-lo." Conclui: "Sem pretendê-lo conscientemente, mas presente na objectividade do que dizemos, estamos a projectar uma imagem monstruosa de Deus: não só ferimos a ternura infinita do seu amor sempre disposto a salvar como, além disso, acabamos por dizer implicitamente algo que não nos atreveríamos a dizer do mais canalha dos humanos."

Quando se reflecte, percebe-se claramente que a chamada oração de petição exige ser repensada. Deus, porque é Força criadora infinita, não intervém de fora, e quem acredita que Deus é Amor não pode estar a implorar-lhe que tenha piedade. Fazê-lo é contradizer-se.

Compreende-se - isso sim - que o crente, na sua dor e frente ao horror do mundo, ore, fazendo perguntas e gritando com Deus. Job, sentindo-se inocente, queria levar Deus a um tribunal que julgasse com independência. Está na Bíblia! Jesus rezou na cruz: "Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?" E, como sabia o teólogo protestante Dietrich Bonhoeffer, executado pelo nazismo, o crente terá cada vez mais de aprender a "viver diante de Deus e com Deus sem Deus".

Não há Homem religioso que não reze. Mas, como diz o Evangelho, é preciso pedir o que a maior parte das vezes se não quer pedir: o Espírito Santo e a conversão. Na verdade, não se trata de converter Deus à vontade humana e aos seus caprichos, ao seu orgulho e vaidade, à sua avareza e ganância, mas de o Homem se converter ao que Deus quer: simplicidade, capacidade de partilha, humildade, paciência e todas aquelas virtudes que já não estão muito em uso, mas tornam o Homem humano e trazem paz.

Quem não deseja ardentemente estar com o Amor? Rezar é marcar encontro com Deus, Anti-mal e Fundamento de todo o ser - Deus é Presença intimíssima e infinitamente activa em todo o real. Nesse encontro, o Homem faz então a experiência da religação à Fonte criadora e dinamizadora de tudo, reconcilia-se com a finitude e, depois de ter descido ao mais profundo, volta ao quotidiano da vida com esperança e serenidade, aquela serenidade de que fala Santa Teresa de Ávila: "Nada te perturbe. Nada te espante. Tudo passa. Deus não muda. A paciência tudo alcança. Quem tem Deus nada lhe falta. Só Deus basta."

No entanto, a serenidade não significa passividade nem resignação. Pelo contrário, quem foi ao encontro do Deus que, como diz o Evangelho, mora no oculto, "identifica-se" com ele e com o seu amor e entrega-se ao cuidado da sua obra, a começar por quem mais precisa: o pobre, o escarnecido, o humilhado, o doente, o chicoteado, o velho, o deficiente, qualquer um que sofre. Afinal, é mesmo possível, por exemplo, nós acabarmos com a fome em África!

O Evangelho diz que Deus sabe do que os seres humanos precisam, antes de lho pedirem. Por isso, previne contra o longo palavreado vão de quem reza. Manda é o silêncio e a paz interior, para que ele possa entrar: "Tu, quando orares, entra no teu quarto, e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai."

Anselmo Borges

18.4.07

A tensão assumida

DOMINGO III DA PÁSCOA Ano C
"Ao romper da manhã, Jesus apresentou-se na margem,
mas os discípulos não sabiam que era Ele."
Jo 21, 4

Não deixa de ser estranho que os encontros com Jesus ressuscitado comecem por uma incapacidade de os discípulos O reconhecerem. Jesus precisa dizer uma palavra ou fazer algum gesto, mostrar os sinais da paixão, comer à sua frente, pegar no pão e no vinho, encher as redes de peixes, para poderem afirmar: "É o Senhor!" É a tensão própria da fé que está presente em tudo o que é essencial, do sangue que corre nas nossas veias ao diálogo do homem com Deus.
Paul Klee, um pintor expressionista do século XX escreveu: "Tornar-se é melhor do que ser." "Nascemos humanos mas também nos tornamos humanos", dizia-nos o Dr. Juan Ambrósio no início de um ciclo de conferências sobre a experiência religiosa no nosso tempo. Somos pouco educados para viver as tensões que são essenciais ao nosso crescimento, e o mínimo conflito gera fuga ou violência em vez de criar diálogo e tolerância. Prefere-se a paz de "não fazer ondas" ainda que se reprima o que era preciso dizer, ou então procura-se vencer a todo o custo o adversário e ficar por cima. A tensão incomoda o nosso acomodamento, obriga a rever os preconceitos, impulsiona a procura, não tem que terminar com um vencedor e um vencido. E quando desvalorizamos a tensão o que cresce é a indiferença, esse "caruncho" pernicioso das almas, mascarado de liberdade, que desumaniza e apaga nos olhos o brilho das estrelas.
A própria experiência cristã acontece em tensão: Deus encontra-se com o homem, sem Deus deixar de ser Deus nem o homem deixar de ser homem? Tudo se torna possível neste sublime diálogo. E esta tensão não é para ser ultrapassada mas assumida. Em Jesus Cristo o encontro é pleno e nele todos o podemos fazer. É possível falar muito disto e dizer inúmeras coisas bonitas, mas ninguém nos pode substituir nessa experiência. Como Pedro na barca, é preciso "atirarmo-nos à àgua" para ir mais depressa. Que realidade humana de maior tensão do que o próprio amor? Este querer o maior amor a quem amamos, ou como dizia Camões "transforma-se o amador na cousa amada", é um caminho nunca ultrapassado mas tem de ser assumido. Também a corda de uma viola para estar afinada precisa estar na tensão exacta, e isso disse-o luminosamente Sebastião da Gama: "A corda tensa que eu sou, / o Senhor Deus é quem / a faz vibrar... / Ai linda longa melodia imensa!... / - Por mim os dedos passa Deus e então / já sou apenas Som e não / se sabe mais da corda tensa..."!
Uma vez reconhecido e alimentados, Jesus pede a Pedro a sua profissão de amor. Pede-lhe que passe da tensão de O ter negado à tensão de O amar. Esta é a tensão que importa testemunhar em Igreja, no diálogo que faz crescer, na humildade que revela a beleza, no serviço que mata as fomes. É esta tensão que assumimos e a única pesca que desejamos? Ou lançamos as redes e elas vêm vazias?

Padre Vítor Gonçalves

[enviado por Jorge Mayer]

10.4.07

Conto de Páscoa

Quando Pedro acordou notou logo que não estava em casa, onde se deitara na noite anterior. Aquilo parecia uma gruta, uma funda e escura gruta. O primeiro pensamento que lhe veio à cabeça foi: "Afinal Platão tinha razão: sempre estamos numa caverna!"

À medida que os seus olhos se habituavam, ia notando que por ali andava muita gente. Depois de interrogar alguns sem obter respostas, uma senhora idosa disse-lhe: "Estás aqui precisamente como no mundo de onde vieste. Um dia aparecestes lá, sem nunca saberes bem a razão! Porque te inquietas?" De uma forma bizarra esta explicação satisfazia-a. E aos outros também.

Toda a gente parecia muito ocupada. Havia que apanhar comida, confeccionar roupas e outros utensílios. Alguns dedicavam-se à recolha de diamantes, que serviam de moeda, outros à produção e manuseamento de cacetes e outras armas.

Pedro achava tudo aquilo surpreendente. Como podiam, sem saber o significado da sua presença ali, acomodar-se e não pensar nas questões decisivas? Talvez fosse isso que ele fizera toda a vida, mas agora, que tomara consciência da sua inconsciência, queria como Platão conhecer a razão da caverna.

De súbito, encontrou a resposta. Ou pelo menos a pista para a resposta. Tudo ali só era possível por causa da luz. Toda a vida da caverna dependia da iluminação mortiça que banhava o local. De onde vinha a luz que os alumiava? Se soubesse a resposta a isso, Pedro sentia que obteria a solução para todos os enigmas. Olhando com atenção notou que era de um corredor, uns três metros acima do chão, que entrava a claridade. Pedro sentiu então que a única coisa que interessava era seguir por ali e encontrar a origem da luz. A luz que dava sentido a tudo o mais. Perto do corredor estava um homem velho, que sorriu quando Pedro lhe explicou o que pretendia. "É curioso que queiras saber de onde vem a luz. Hoje, a maior parte dos que procuram respostas sente-se mais atraída pela escuridão ali do fundo."

"Mas como?", perguntou Pedro. "Que se pode descobrir no escuro? A escuridão não dá respostas." "Talvez", continuou o homem, "mas o mistério da sombra hoje é mais atraente. E tu, que esperas encontrar na fonte da luz?".

Pedro confessou-lhe que era cristão. A sua fé ensinava-lhe o que esperar no fundo do corredor. Ele estava convencido de que, se seguisse por ali, haveria de chegar a um túmulo vazio, com "os panos de linho espalmados no chão, e o lenço, que tivera em volta da cabeça, não no chão juntamente com os panos de linho, mas de outro modo, enrolado noutra posição" (Jo 20, 6-7) A porta desse túmulo daria para o Céu.

"Ah! Bem me parecia que o Céu tinha de entrar", riu o homem. "Ainda hoje a maioria dos que querem seguir pelo corredor acreditam nisso. Mas nenhum volta para confirmar que há um Céu. Eu pensei algum tempo como tu, mas acabei por me convencer de que a luz vem simplesmente da rocha. Tenho a certeza de que a luz da caverna está na própria caverna. Não é preciso procurar forças exteriores. Isso é superstição. Como podes provar que existe o Céu e a sua porta no túmulo vazio?"

Pedro ficou uns momentos pensativo e depois respondeu. "Não posso provar, como tu não podes provar a existência da rocha luminosa de que falas. Ambos vivemos na fé. A fé a que entreguei a minha vida diz-me que existe o Céu e o túmulo que lá conduz."

"Sim, todos vivemos na fé", respondeu o outro. "Mas a minha fé não precisa de histórias mirabolantes, de Deus criador e redentor. E se é tudo mentira? Já pensaste nisso? E se fazes a viagem sem encontrar nada?", perguntou o homem.

Pedro, depois de pensar ainda um pouco, respondeu: "Eu sei que é verdade. A certeza que tenho é bem real. Tenho o testemunho de milhões de santos que, entregando-se totalmente à luz do túmulo vazio, não só transformaram o mundo mas, mais importante, viveram vidas felizes e plenas. Essa é a minha certeza, que já começo a sentir na própria vida. Uma certeza muito mais valiosa do que qualquer prova que possas invocar."

"Mas, mesmo que fosse tudo mentira", continuou Pedro, "duas coisas não posso negar. Primeiro, a minha ânsia por essa luz. Toda a minha existência exige que procure a fonte da única coisa que lhe pode dar sentido. Além disso, a segunda verdade inegável é que não posso imaginar outra forma de viver que responda melhor à minha busca de felicidade. Mesmo que não chegue ao Céu, amar a Deus e ao próximo é a melhor forma de viver na Terra." E Pedro trepou para o corredor.

João César das Neves

[enviado por Jorge Mayer]

5.3.07

“Sede misericordiosos como o vosso Pai”

Sinto que, sem cessar, por todo o lado, a Paixão de Cristo está a acontecer de novo. Estamos nós prontos para participar nesta paixão? Estamos nós prontos para partilhar os sofrimentos dos outros, não apenas onde domina a pobreza mas também por toda a parte da terra? Parece-me que a grande miséria e o sofrimento são mais difíceis de resolver no Ocidente. Ao encontrar alguém esfomeado na rua, oferecendo-lhe uma tigela de arroz ou uma fatia de pão, posso apaziguar-lhe a fome. Mas aquele que foi pisado, que não se sente desejado, amado, que vive no medo, que se sente rejeitado pela sociedade, esse experimenta uma forma de pobreza bem mais profunda e dolorosa. E é muito mais difícil encontrar remédio para ela.

As pessoas têm fome de Deus. As pessoas estão ávidas de amor. Temos consciência disso? Sabemos disso? Vemos isso? Temos nós olhos para o ver? Se muitas vezes o nosso olhar se passeia sem se fixar. Como se apenas atravessássemos o mundo. Devemos abrir os olhos e ver.

Teresa de Calcutá (1910-1997), fundadora das Irmãs Missionárias da Caridade
in "Não há maior Amor"

[enviado por Jorge Mayer]

15.2.07

Sociologists see strong identity, less commitment in young Catholics

WASHINGTON (CNS) -- Young adult Catholics have a strong Catholic identity but do not feel much of a commitment to the institutional church or its moral teachings, two sociologists said Feb. 6 in Washington .

The seemingly paradoxical assessment came from James A. Davidson of Purdue University in West Lafayette , Ind. , and Dean R. Hoge of The Catholic University of America in Washington at a Woodstock Forum on the campus of Georgetown University .

Davidson and Hoge are co-authors with William V. D'Antonio of Catholic University and Mary L. Gautier of the Center for Applied Research in the Apostolate at Georgetown of "American Catholics Today: New Realities of Their Faith and Their Church," to be published in late March by Rowman & Littlefield.

The book analyzes Gallup surveys from 1987, 1993, 1999 and 2005, and finds that Catholics born after 1979, in what the authors call the "millennial generation," have deep differences from previous generations of Catholics -- differences that are unlikely to disappear when they marry and have children.

"There's a disconnect between them and the institutional church," said Davidson . "And when they get older, they are not going to be like the Catholics of previous generations. They are going to be the Catholics they are now."

Hoge said the disconnect might be exacerbated by the fact that the young diocesan priests who will serve the millennial generation are moving in the opposite direction, becoming more strict about some church teachings and more likely to adhere to the "cultic" model of priesthood as a man set apart than to the "servant-leader model" favored by the majority of older priests.

For example, while 94 percent of priests 35 or younger said they believe ordination confers "a permanent character making (the priest) essentially different from the laity," only 70 percent of priests ages 56-65 said that. Asked whether the church "needs to move faster in empowering laypeople in ministry," 86 percent of the priests ages 56-65 and 54 percent of the youngest priests agreed.

For the purposes of their book, the sociologists divided the entire adult Catholic population into four groups -- pre-Second Vatican Council, those over 65, who make up about 17 percent of U.S. Catholics; the Vatican II generation, ages 45-64, 35 percent; the post-Vatican II generation, ages 27-44, 40 percent; and the millennials, ages 18-26, 9 percent.

On abortion, 58 percent of the pre-Vatican II generation said abortion was a core Catholic teaching, but only 7 percent of the millennials did. Sixty-nine percent of the oldest group said homosexual behavior is always wrong, while only 37 percent of the young adult Catholics agreed.

On the question of premarital sex, there was a sharp drop in those who believe it is "always wrong" from the pre-Vatican II generation (62 percent) to the Vatican II generation (26 percent). The figure was only slightly lower for the post-Vatican II generation (22 percent) and the millennial generation (21 percent).

Referring to the forum's theme, "Young Adult Catholics: Believing, Belonging and Serving," Davidson said, "Belonging is not a problem; they feel comfortable calling the church home. And I don't think serving is a problem. It's the believing that's the problem."

Young adult Catholics see the church as having "no credibility, no plausibility, no authority," he added. "They practice their faith by caring for other people."

Responding to the sociologists' talks, two women who work with young Catholics found signs of hope for the church in the next generation.

Catherine Heinhold , a campus minister and director of the Catholic retreat program at Georgetown , said many students believe "it is more important to serve the poor than to go to Mass" but they also feel "a very real, deep desire to grow in their faith and spirituality."

"They respond well to outreach," she said, "and they are really hungry for God."

Sister Mary Carroll Kemp , a member of the Sisters of the Holy Names of Jesus and Mary who is a ninth-grade religion teacher at Gonzaga College High School in Washington , said that although community service and retreat programs at the Jesuit-run school are not obligatory, "everyone wants to do them."

But she said the most important element of the service programs and retreats is the time spent in faith-sharing and reflection each day, "talking the talk about Jesus , the Gospel and God."

Nancy Frazier O'Brien

www.catholicsforchoice.org

[enviado por Jorge Mayer]

8.2.07

Entre eles não havia indigentes!

1.A pobreza e a exclusão não são uma fatalidade. Quando os Actos dos Apóstolos falam de uma comunidade de voluntários “sem indigentes”, não pretendem elaborar uma teoria social. Os meios de comunicação social e seus comentadores andaram atarefados a preparar um discurso, ao Presidente da República, que desse um puxão de orelhas aos parlamentares, que carregasse bem as tintas nos avisos do Banco de Portugal, do FMI e da OCDE, para reforçar as oposições ao Governo. Cavaco Silva, sem nomear os factores que tornam o grupo dos ricos tão rico e o dos pobres tão pobre, limitou-se a olhar para o nosso país, fortemente marcado pelo dualismo do seu desenvolvimento, com persistentes e profundas desigualdades sociais.
Se decepcionou algumas expectativas políticas, também ficou muito aquém – e compreende-se – das exigências de inclusão inscritas nos Actos dos Apóstolos: “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava seu o que possuía, mas tudo era comum entre eles. Com muito vigor, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus. E todos eles tinham grande aceitação. Não havia entre eles indigentes algum, porquanto os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o dinheiro e colocavam-no aos pés dos apóstolos; e distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade” (Act 4, 32-35).
Esta insistência na distribuição talvez não seja tão louca como a sua aparente ingenuidade pode sugerir. De qualquer modo, não era uma imposição à sociedade nem sequer aos membros da Igreja, ao contrário do que acontecia na comunidade, algo fundamentalista, de Qumrân. Era o resultado de conversões e opções pessoais. Reflecte, no entanto, a conhecida política distributiva de S. Lucas e apresentada como expressa vontade de Cristo: “Vendei os vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não fiquem velhas, um tesouro inesgotável nos céus, onde o ladrão não chega nem a traça rói” (Lc 12, 33).
Perante certo homem de posição que desejava ir mais longe que os mandamentos, Jesus foi peremptório: “Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me.”
Segundo o texto, ouvindo isto, o homem ficou cheio de tristeza, pois era muito rico, e Jesus exclamou: “Como é difícil aos que têm riquezas penetrar no Reino de Deus! Com efeito é mais fácil um camelo [corda que segura os barcos] entrar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!”
Os ouvintes – que desejavam ser ricos como toda a gente – perguntaram: “Mas, então, quem poderá salvar-se?” Jesus não fechou a porta: “As coisas impossíveis aos homens são possíveis a Deus” (Lc 18, 18-30).
Estamos, pois, em plena ordem teológica, espaço da liberdade e da utopia, e bem longe de um contrato meramente social. Cristo, retomando o Deuteronómio, tinha repetido que nunca faltarão pobres na terra para quem quiser ser generoso, mas a sua vontade é a de que não haja mesmo pobres, uns à mesa e outros à porta (Dt 15; Lc 16, 19-31).
2. Segundo Adam Smith, são escusadas as preocupações – religiosas ou laicas – com a inclusão social. Enunciou a sua famosa lei, em 1776: “Ninguém se propõe, em geral, promover o interesse público, nem sabe até que ponto o promove. Só pensa no seu próprio lucro, mas é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não entrava nas suas intenções. Ao procurar o seu próprio interesse, promove o da sociedade de uma maneira mais efectiva do que se este entrasse nos seus desígnios.”
Se isto fosse inteiramente verdade, bastaria garantir a livre concorrência e o bem comum da humanidade estava, automaticamente, assegurado. A fé neste dogma económico tem adeptos, mas não convence toda a gente. A discussão sobre modelos económicos e sociais é inevitável. Está na moda denegrir o modelo social europeu.
Para Jefrey D. Sachs, catedrático de Economia e director do Earth Institute da Universidade de Columbia, “se o mundo passasse mais tempo a analisar o que é que verdadeiramente funciona e o que não funciona, não fariam falta tantas discussões sobre economia. Debate-se, quase por toda a parte, como combinar as forças do mercado e a segurança social. A esquerda pede uma ampliação da protecção social; a direita diz que, ao fazê-lo, está a debilitar o crescimento económico e a aumentar os défices orçamentais. Mas podemos fazer com que o debate avance, examinando os bons resultados económicos da Dinamarca, Finlândia, Islândia, Holanda, Noruega e Suécia.
Embora nenhuma experiência regional seja directamente transferível, os países nórdicos souberam combinar a assistência social com níveis elevados de rendimento, um crescimento económico sólido e a estabilidade macroeconómica. Alcançaram também uma alta qualidade de governo. Existem, certamente, diferenças entre os países nórdicos, com uma despesa social superior na Dinamarca, Holanda, Noruega e Suécia e um pouco mais baixa na Finlândia e Islândia. Não obstante, enquanto os impostos nacionais nos EUA rondam os 20 por cento do PIB, nos países nórdicos a proporção é superior a 30 por cento. A fiscalidade elevada mantém, à escala nacional, a saúde, a educação, as pensões e outros serviços sociais, dando como resultado níveis baixos de pobreza e uma diferença de rendimento relativamente baixa entre as unidades familiares mais ricas e as mais pobres”.
O artigo continua as comparações, em pormenor, com vantagens sociais para os países nórdicos. O que me importa ressaltar é só isto: a pobreza e a exclusão não são uma fatalidade. Quando os Actos dos Apóstolos falam de uma comunidade de voluntários “sem indigentes”, não pretendem elaborar uma teoria social. Constroem uma incisiva parábola que devia fermentar a imaginação económica e financeira em função de um mundo solidário.
A esperança, como virtude, é para as causas difíceis.

Frei Bento Domingues, O.P. (in edição online do jornal Público)

[enviado por Jorge Mayer]

sobre o aborto

Envio este e-mail porque me preocupa a ignorância que reina neste pais no
que toca ao aborto. Tenho todo do prazer em discutir civilizadamente com que
tiver ideias contra as minhas, mas assusta-me que alguém vá votar no dia 11
com base no que "toda a gente sabe", toda a gente sabendo que senso comum e
bom senso não são sinónimos.

Para começar uma correcção: a chamada interrupção voluntária da gravidez
*não
e uma interrupção mas sim uma terminação*, assim como o roubo não a
interrupção voluntária da posse de um bem de outrem.

Não são "muitas pessoas" que definem o embrião e mesmo óvulo como vida. A
classe científica tem isso como dado adquirido desde o século XIX. Desde a
fecundação que o óvulo e um ser totalmente diferente da mãe e que, se lhe
forem dadas as condições certas, crescera e passara pelos estágios de
crescimento: 1 semana, 5 semanas, 10 semana (em que já se detectam ondas
cerebrais, o coração já bate, o feto sente dor - e muita segundo as ultimas
investigações, pois ainda não formou o sistema inibidor da dor - e todos os
sistemas se encontram operacionais excepto o respiratório).

O que esta em discussão neste referendo não é se as mulheres tem o direito,
em determinadas situações, de sobreporem a sua vida a outra, ou mesmo se uma
mulher deve ser presa por ter realizado o aborto. Ate hoje menos de 40
pessoas (mulheres – diferente de vitimas de aborto! As vitimas de aborto são
os seus filhos! - médicas, enfermeiras, parteiras) foram acusadas de crime
de aborto nos últimos anos, e as mulheres ou foram absolvidas ou tiveram
pena suspensa, nenhuma esteve realmente presa. O que está em discussão é se
a mulher tem o direito de, até as 10 semanas, terminar a vida de outrem sem
terem de dar justificações, nem mesmo ao pai da criança! Não é o que esta na
pergunta, mas sim o que esta no projecto-lei que vai ser aprovado se o sim
ganhar.

Para terminar gostaria apenas de referir que o aborto clandestino não vai
diminuir com a liberalização do aborto. Esta provado na maioria dos países
que liberalizaram o aborto. Liberalizar o aborto vai dar muito dinheirinho a
clínicas privadas espanholas especializadas em aborto, à custa dos nossos
impostos e da miséria alheia. Miséria de mulheres obrigadas a fazer aborto
pelos namorados, maridos, pai a patrões porque até é legal!

Só mais uma coisinha, será que alguém me pode esclarecer porque é que o
dinheiro que o senhor ministro da saúde descantou para financias os abortos
não foi encaminhado para ajudar as associações de apoio a vida que surgiram
após o referendo de 98, que já salvaram milhares de vidas sendo que algumas
não viram um tostão do estado?

Se acha que o que digo é uma enxurrada de mentiras, então dê-me dados sérios
e credíveis para refutar as minhas afirmações que eu apresento-lhe os dados
sérios que sustentam cada uma. Fico ansiosamente a espera de respostas.

Inês Urbano

7.2.07

1

Um caso de contraditórios verdadeiros. Deus existe, Deus não existe. Onde está o problema? Estou perfeitamente segura de que existe um Deus, no sentido em que estou perfeitamente segura de que o meu amor não é ilusório. Estou perfeitamente segura que não existe Deus, no sentido em que estou perfeitamente segura de que nada de real se parece com aquilo que posso conceber quando pronuncio esse nome. Mas o que não posso conceber não é uma ilusão.

Simone Weil, A Gravidade e a Graça, p.115, edição Relógio D'Água